ATABELAPERIÓDICA
A VER O MAR
Como toda a gente que a viu, gostei de “AS Idades do Mar”, na Gulbenkian. Exultei com as misturas e as surpresas. A baralhada de épocas e de estilos (e de graus de talento). Um Pousão grande, um Constable minúsculo e luminoso e um inesperado Caspar D. Frederich. A quadrícula de Torres-Garcia e o futurismo de Amadeu. O mar mutável como a energia, a mola do mundo. E não faltam as obras primas da Casa, a começar pelos Turners. Da varanda do meu quarto vejo o Tejo a entregar-se ao Atlântico (e Sintra entre as árvores). Agrada-me pôr a mente a viajar sozinha pelos estranhos mares do pensamento (como no poema de Wordsworth). Há meses fui visitar Sofia Prestes na sua casa e estúdio nas faldas da serra de Sintra, com o mar ali tão perto. Gosto muito da sua pintura volumétrica, lavada e solitária. Noto o parentesco figurativo com Erich Fischl e a atmosfera carregada de cinzentos (e os pedregulhos) de João Hogan. Bem como a companhia dos animais (cães a solo, e gaivotas, muitas). Na sua pintura passeio pelo litoral – a Marginal, a Adraga, a Praia Grande. Reparo nas ameaças da técnica e da máquina: os postes de electricidade, a mota e a lambreta, o carro pela autoestrada, a bomba de gasolina, o avião minúsculo mas ameaçador (lembro-me dos Concorde de Wolfgang Tillmans). Ultimamente as cores carregaram. A presença humana tornou-se mais forte, mais escultórica. A contemplação deu lugar à acção. As máquinas (os tratores nas praias de pesca) dominam a composição. A obra gráfica, a aguarela, o vídeo também impressionam. Sei que Paula Rego gosta da pintura de Sofia Prestes, mas quem mexe os cordelinhos anda distraído e ainda não reparou.
Jorge Calado
Jornal Expresso, 8 Dezembro 2012
Sintra - a portrait
a parte oposta ao eu
“Quando se deixa guiar pela observação a mão põe-se à prova do inacessível que se encontra do outro lado, na parte oposta ao eu; e esse outro lado só é acessível por tentativas, capta-se eventualmente por entre a incerteza e opera sem se saber exactamente como, mas deixando-se levar pelo fulgor do olhar”
A.Arikha
Fevereiro de 2012
Monóchromos
La Grèce - 'petite et sacrée', comme disait Jean Cocteau - est le berceau de notre culture. Mais alors qu'il est possible de saisir l'intelligence classique, plongeant dans le bain d'Archimède ou glissant nos mains entre les parallèles d'Euclide, il est plus complexe de saisir la sensibilité grecque: celle des temples, poèmes, pièces de théatre où se jouent les premières interrogations sur la vie.
Mélange de pessimisme et d'optimisme, le verdict final du monde grec sur la destinée humaine - nous rappelle Marguerite Yourcenar -, consiste à voir dans l'homme 'le rêve d'une ombre'. C'est à la quête archéologique de notre sensibilité, celle de nos rêves et des ombres qui l'habitent, que nous invite Sofia Prestes. Une fois de plus, dans son travail, Sofia nous montre ce dont il est impossible de parler. En compagnie de ces tableaux, nous sommes à même de comprendre les rêves d'Ulysse quand il méditait devant la mer déserte. Pour nous, c'est là que tout a commencé".
Arbogast Pucci, Buenos Aires
Janvier, 2011
Still Life
Já vai longe o século XIII, em que o povo florentino conduzia triunfalmente pela cidade a Virgem de Cimabue.
As crenças da altura exigiam a necessidade de uma tal celebração.
Essas crenças – e outras posteriores – tendo desaparecido, põe-se um problema premente: qual pode ser hoje, o significado de uma obra de arte? Na maior parte dos casos estamos na situação de Alice que em Through the Looking Glass, lendo um poema, diz que este ‘enche a cabeça de ideias mas ( ela ) não sabe bem quais’.
Há, no entanto, excepções e o trabalho de Sofia Prestes é uma delas.
Nas suas pinturas adivinhamos uma necessidade vital, como se perante o fracasso das ideias e dos grandes desígnios só nos restasse escapar à linguagem.
A clareza e o sentido, aqui, provem não da racionalidade mas de um fulgor intuitivo. Atenta a pequenas cenas do quotidiano ela descobre, de modo acidental, coincidências ou sincronias que unem o seu mundo interior à realidade física exterior: as fronteiras desaparecem e o seu trabalho atinge o mistério da unidade primitiva.
Estas epifanias – ou espasmos e espantos cognitivos – são os prazeres dionisíacos de que Nietzsche tanto falou: dão-nos a ver a embriaguez de quem toca as coisas-em-si. A pintora desaparece, só fica o rasto da sua vivência. Então já não há diferença entre arte e vida. E nós já não somos Alices com a cabeça cheia de ideias ‘sem sabermos bem quais’.
Vendo, ouvindo Sofia Prestes falar-nos de deleites e sincronias podemos, como os antigos florentinos, celebrar uma certeza redentora: para alem das aparências pós-modernas – as realidades virtuais e seus fogos de artifício –, o mundo existe.
Arbogast PUCCI, Lugano – Suiça
Março 2009
38º 47 N 9º30 W
Pintura a óleo
Lisboa 2005
As Cordenadas geográficas que dão titulo a esta exposição parecem querer exprimir um sentido de exactidão na escolha de um lugar. A identidade desse lugar, não nomeada senão por uma abstracção numerica que a torna contudo irreductível à de qualquer outro, é a de um finisterra. Último chão diante do mar imenso, esse ponto preciso, o Cabo da Roca, pode acolher quer o termo quer o início de uma errância, uma coisa ou outra dependendo da propensão do viajante que o elegeu como fronteira fisica mas também, como lugar propiciatório ao pensamento deambulante Agrada-me a deambulacão e a errância, mesmo que não possam ser cultivadas à escala de Bruce Chatwin e se pratiquem em territórios já intensamente percorridos. Desde logo nos museus, sitios onde trabalho e onde ingenuamente se julga perseguir um paradigma de catalogação e ordenação totalizantes. Por isso ambiciono, algo secretamente, uma espécie de museologia errática, em que o olhar sobre as obras não seja um exercicio de mero reconhecimento, em que os vazios e os silêncios permitam ao público outros confrontos de conhecimento e criação.
Podendo parecer demasiado onírico, encontro nestas pinturas de Sofia Prestes um prazer de errância por territórios que me são comuns e essa matéria indistinta de vazios e silêncios que nos disponibiliza à beleza do mundo.
Divido-as elementarmente, sem preocupações de exaustividade, em dois grupos:
- O da representação de figuras, involuntários modelos de uma narratividade ausente ou misteriosa, vultos anónimos e talvez apenas agrupados por um vaguear em memórias, as quais se refereciam como antigas no esplêndido par de oficiais, certamente britânicos, dispostos em branca simetria de posse.
- O das paisagens de tipo urbano e arquitectural, ermas de gente, estruturadas pos austeros volumes rectos, ritmadas formas verticais e sombras alongadas, com súbitos fechamentos do espaço quando a ondulação da linha ou a brutal “invasão” de formas transversais se afirmam. Por outro lado, quando o céu é hegemónico ( e menos opaco ou denso como um ecrâ novoento ), a composição amplia-se numa poética e despojada horizontalmente.
A natureza "natural", por assim dizer, como motivo pictórico está aqui mais radical e inconograficamente ausente que em anteriores obras suas. Julgo porém que se mantém e aprofunda uma relação de complexidade entre o olhar que se seleccionou e foi dando corpo a estas imagens e os fragmentos de realidade que erraticamente elegeu como modelo ou pretexto figurativos. A cor e a luz são, em boa medida, uma chave complementar para essa complexidade, criando uma surda vibração tonal e atmosférica nos planos da imagem, revestindo-a de uma aura enigmática, incómoda, exigindo do espectador mais do que um mero envolvimento do olhar.
Embora se sirvam do nosso mais corrente quotidiano visual, não são, assim, pinturas amáveis, nelas se inscrevendo um frémito de inquietação ou de expectativa latente, já bem sensiveis nos limiares pertubantes, entre o prado liso e o cerrado bosque, a clareira luminosa e a sombria orla da floresta, que integram outras ainda recentes paisagens de Sofia Prestes
José Alberto Seabra Carvalho (Director do núcleo de pintura do Museu de Arte Antiga)
Lisboa 2005
Pintado num jardim
Páginas de um diário gráfico – Aguarela
Lisboa 2004
Sofia Prestes é uma pintora que gosta de representar o real. As suas obras sobre paisagem reflectem o prazer naturalista de quem, perante a paisagem, enfrenta dois tipos de realidade: a realidade envolvente e a realidade própria, em afinidade e fusão com o quadro natural que se lhe depara.
O confronto e o dialogo com o mundo natural é uma questão da actualidade. Nunca como desde o Romantismo a questão da relação com a paisagem foi tão premente. Talvez por escape a uma realidade terrivel vivida quotidianamente em que a ocupação selvagem do territorio e as urbanizações caoticas levam a multiplas perdas, não apenas à da qualidade de vida.
A natureza, um olhar renovado sobre o natural, são um manancial informativo para os artistas contemporeanos. A paisagem, tema relativamente recente na cultura ocidental, mas vastamente sedimentado na cultura oriental, é revisado hoje com um novo olhar.
O nome de Caspar David Friedrich é recuperado de longos anos de silêncio, como tudo, ou quase tudo, representativo da cultura alemã, que foi censurado no pós-guerra.
Sofia Prestes apresenta nesta exposição algo que pode ler-se como páginas de um diário gráfico. Dir-se-iam imagens que poderiam ser completadas por um texto. A autora intitulou as series que apresentaem três grupos a que chamou respectivamente "Momentos", "Passagens" e "Residuos". São percursos diversos em que as imagens, ao surgirem, engendraram uma narratividade, ainda que esta seja nebulosa.
Apontamentos em que o agenciamento das imagens é aparentemente aleatório. Chapéus de sol meios abertos, objectos esparsos, figuras que produzem sombra, evocação de areais e paisagens desoladas, temas diversos que estranhamente se relacionam. Parecem estas páginas colecções de selos, pois são imagens pequenas e requintadas, mas com quadros de referência diferenciados.
Pode falar-se de um assumido olhar disperso sobre uma realidade que solicita e convoca em multiplas direcções. Flutuação e divagação, caracterizam o momento poetico em que a autora se encontra e que possivelmente reflecte a suspensão necessária para um salto criativo.
Narratividades são apontadas, mas pela sua excessiva confluência, acabam por negar-se. Sentidos que pela dispersão se anulam, histórias que são anti-histórias, criamuma logica da variedade chamando a atenção para um problema crucial do nosso tempo, que é a anulação semântica, pelo excesso de imagens que nos circundam.
Cada imagem é um convite a um lugar a visitar, à invenção de uma história que surge da imagem, um pouco à maneira de Paul Klee, em que uma forma geometrica, como por exemplo um rectângulo, levaà ideia de casa. Sofia faz-nos saltar de um oeste desolado para um deserto de onde não se sabe onde, de um céu urbano atravessado por um avião a jacto, para a contemplação de uma planta, para uma multiplicidade de coisas.
Coisas que têm tambem o charme de serem a linguagem cifrada que só a autora descodificará. Algo de femenino e talvez confessional existe nesta pintura. São reflexões necessárias, imagens que tinham de ser registadas.
E a pintura é feita disso mesmo, os processos raramente são explicitos, oconvite ao jogo da descodificação é eterno, por mais frias e objectivas que sejam algumas sensibilidades pictóricas eivadas de desconstruccionismo e desdramatização modernistas.
Esta exposição marca alguma diferença das anteriores. O seu lado quase experimental pode estar anunciando uma viragem, no sentido do abandono da tradição da pintura pura, para extravasar a bidimensionalidade da tela, e quem sabe o que poderá anunciar-se em seguida.
Momento significativo no processo criativo da autora, estas " Paginas de um Diário Gráfico", são auto-retratos de um momento novo na obra de Sofia Prestes.
Sílvia T. Chicó (Crítica de arte )
Lisboa, 5 de Maio de 2004
A sede
Sofia Prestes: discurso sobre a sede
Sede, água, repetição de uma imagem , reflexão sobre algo que vai preocupando demais os homens de hoje, por saber que eventualmente um dia não muito longínquo a água poderá faltar. Repetição de um tema? Uma instalação tipo Andy Warhol tantas Marilyns better then one?: não. Aqui apresenta-se um objecto, um copo de água , aparentemente sempre o mesmo, em que todavia pequenas diferenças podem ser observadas.
Como um retrato obsessivo. Quantas vezes sou capaz de pintar o meu retrato ou o retrato do meu amado? Muitas, todas as possíveis, e mais haveria se coubessem no mundo. Um tema eleito acaba por ser como uma descoberta amorosa; sem razão aparente produz-se uma escolha redutiva, única, obsidiante. Na presente instalação a artista reflectiu sobre a sede e sobre a a representação tão explicita quanto possível um copo meio cheio de água. Meio cheio, meio vazio. A aposta é precisamente nessa ambiguidade.
Falar do alcance conotativo de um tema como a água levar-nos-ia longe, as implicações são múltiplas e encontram-se referidas em quase todas as culturas humanas. Porque nós somos água como somos natureza.
Mas é interessante perguntarmo-nos o porquê desta instalação o sentido explícito e oculto da mesma. O que interessou à artista, a razão deste número escolhido –quarenta peças - e o porquê deste demanda simbólica. Que quer dizer este número, que quarenta dias são estes, que alusão aqui existe a uma possível travessia do deserto?
Esta instalação, o tempo de trabalho , de reflexão e de investimento na obra, fazem-nos adivinhar uma operação deliberadamente ritualizada, um propósito de ultrapassar uma fase, talvez de realizar uma catarse. Necessariamente uma experiência deste tipo gera uma marcada inscrição no discurso temporal da sua feitura. Foi este o tempo de travessia do deserto e as obras de arte servem para operar transformações que se inscrevem nas vidas dos seus autores, bem como estes se retratam nas mesmas. É essa uma das funções da criação artística , a de ajudar os artistas a encontrar repostas para as suas perplexidades.
Sofia Prestes recupera uma das múltiplas propostas da arte conceptual dos idos anos setenta, agora sem o radicalismo de quem apresenta um novo conceito de arte. Numa atitude que perfeitamente se inscreve numa actualidade para a qual o pós-modernismo contribuiu definitivamente, desestruturando estilos e posturas artísticas, devolvendo aos artistas a liberdade de combinarem atitudes tradicionais com outras renovadoras, a artista foi trazendo o conceptualismo para a pintura a óleo, sem a preocupação de enquadramentos estilísticos ou sequer de citar possíveis fontes de influência. Essa uma das aberturas da arte actual, bem como e o seu natural convívio e complementarismo com outros meios de expressão.
Assim , nesta instalação, vê-se como inscrição em página de um diário secreto, um momento da vida da autora, uma “quarentena” a que esta se submeteu, cujo registo assim fica expresso.
Sílvia Chicó
Lisboa, Abril de 2000